Como fazer um projeto de mestrado ou doutorado!?

confused.Acadêmicos têm uma dificuldade incrível para “falar simples”. Isto é, transmitir uma mensagem de forma direta, acessível e sem rodeios. Se houvesse um “complicômetro”, certamente atingiríamos seus níveis máximos. Pensar claramente é fundamental para comunicar qualquer ideia. A dificuldade de muitos pesquisadores é articular todo o conteúdo e erudição que adquiriram. São muitas “peças de conhecimento”: às vezes não sabemos se o que estamos montando é apenas um quebra-cabeças ou mais de um… Fica é difícil transmitir mensagens aos nossos leitores e pares, se as coisas não estão resolvidas para nós mesmos.

Os acadêmicos hoje são os “pensadores” de antigamente… Mas fato é que pensamos muito sobre os assuntos que estudamos, mas raramente sobre os rumos e direções para onde estamos seguindo. Refletir sobre essas coisas é um exercício metodológico em seu sentido pleno — muito mais importante e essencial do que a aplicação de qualquer técnica ou ferramenta de pesquisa. Mas dá trabalho…

Pense no seguinte: você consegue explicar num parágrafo, de forma simples, para um leigo, qual é o tema de sua pesquisa? Se a resposta for sim, já é meio caminho andado… Exercícios desse tipo são muito legais pra produzir reflexões metodológicas e levar à clareza de pensamento. Apesar da simplicidade é um exercício difícil. É mais fácil ser complicado do que simples…

Aprendi isso com um grande professor que tive na UFMG, Bruno Wanderley Reis — que é também uma das pessoas mais inspiradoras que já conheci (isso é consenso, perguntem a quem quer que o conheça!). Bruno costuma passar uma lista de perguntas desse tipo (mas muito melhor elaboradas) como exercício em sua disciplina de Metodologia, na Pós-graduação em Ciência Política da UFMG. E gentilmente, ele autorizou a reprodução dessas questões aqui no Blog. Compartilho com todos.

Os bravos que conseguirem fazer o exercício todo certamente não terão muito menos dificuldade na redação de um projeto de pesquisa — ou mesmo na execução da pesquisa planejada.

 

Exercício de metodologia, 2010

 

  1. Em termos bem pessoais, recupere o contexto em que você pela primeira vez se interessou pelo tema sobre o qual pretende hoje escrever sua dissertação de mestrado. Enuncie bem diretamente o assunto de que pretende se ocupar, e descreva brevemente as circunstâncias de sua vida pessoal ou de sua formação profissional em que você travou contato com o tema. (Se você não tiver ainda definido com precisão o assunto de que pretende se ocupar na dissertação, não se preocupe: é legítimo – e quase saudável, a esta altura. Mas invente um, que será o seu problema nesta disciplina.)
  2. “Conhece-te a ti mesmo”, dizia Sócrates. Tente exprimir brevemente as razões pelas quais terá passado pela sua cabeça que aquele era um tema do qual talvez você gostasse de se ocupar. Ele te pareceu “importante” de algum modo, no plano intelectual? Em termos práticos? Em que sentido ele é (ou pode ser apropriado como) um problema?
  3. Enuncie agora o seu “problema”, nos termos mais práticos, concretos, que você conseguir. Relacione o objeto do seu interesse com alguma outra coisa, que te parece, em princípio, poder “explicá-lo”, bem ou mal. Procure ancorá-lo nos problemas práticos, ou nas questões específicas, que o levaram a interessar-se pelo tema de saída. Tente formular o problema como uma pergunta, mas não se preocupe – por enquanto – se o problema (ou a pergunta) te parecer muito “local” ou “específico”.
  4. Agora enuncie a pergunta a ser respondida em sua dissertação (o seu problema) de forma mais disciplinarmente orientada, mais “conceitual”, mais “universal”. Lembre-se: o problema deve ser formulado como uma pergunta. (Duas dicas: I. Diferentemente da questão 3, ao montar sua pergunta aqui procure referir-se menos a fenômenos específicos que a tipos de fenômenos: procure substituir substantivos próprios por comuns, e deixemos a identificação do caso a ser estudado para a hora de detalhar o desenho da pesquisa. II. Tente desde já embutir na pergunta – talvez apoiando-se na literatura existente sobre o seu assunto, mas nunca se detendo nela  – pelo menos duas respostas plausíveis que circulam na paisagem: “Há quem diga isso, mas há também os que afirmam aquilo.” Acredite: a atenção a essas duas dicas vai te ajudar adiante…)
  5. (Semântica.) Reflita descritivamente sobre as categorias conceituais explicitamente empregadas na pergunta. Esboce as taxonomias que contêm as categorias operacionais cruciais da sua pergunta. Em seguida, delineie os atributos que permitiriam classificar algum conjunto de fenômenos ou objetos no interior de cada categoria – ou seja, defina as categorias relevantes no âmbito da sua pesquisa. Não se trata de definir os conceitos tal como aparecem na pergunta, mas antes definir as categorias entre as quais os conceitos (concebidos como “variáveis”) poderão variar. Lembre-se de que este é um exercício metodológico, e não teórico: importa menos o que diz a literatura do que os “valores” que essas categorias podem vir a assumir dentro da sua pesquisa. 
  6. (Sintaxe.) Reflita analiticamente sobre as categorias lógicas empregadas na pergunta. Quais são os nexos que você pretende postular (ou contestar) entre os conceitos envolvidos? Sua pergunta efetivamente os descreve com precisão? (Lembre-se de que a escolha das palavras na formulação de um problema não é trivial, e tem implicações sobre o desenho da pesquisa.) 
  7. Com base nas inevitáveis hesitações que terão permeado o esforço de responder as seis primeiras questões, explicite aqui uma ou duas formulações alternativas do seu problema que você terá chegado a imaginar. (Embora as palavras importem, não basta mudar a redação de modo a deixar o problema intacto. Ao imaginar formulações alternativas, você deve conceber, a rigor, outros problemas analíticos – embora sobre o mesmo tema.) Por que você acabou por preferir a sua formulação? Especule: por que razões alguém poderia vir a preferir alguma das alternativas? 
  8. Agora leia novamente a sua pergunta (tal como formulada na questão 4), e procure identificar nela  um conjunto de proposições que a sua pergunta presume serem verdadeiras (ou seja, identifique algumas premissas de que você parte, explícita ou implicitamente). Justifique a razoabilidade de suas premissas – e, acima de tudo, certifique-se de que elas não estejam respondendo de antemão à sua pergunta (ou, dito de outro modo, que elas não estejam comprometendo previamente o seu trabalho com a aceitação de uma hipótese específica como solução do seu problema). Certifique-se, também, de que as suas premissas não sejam idiossincráticas demais, pessoais demais. Afinal, lembre-se de que, em princípio, o público potencial do seu argumento é constituído justamente por aqueles que compartilham com você suas premissas. 
  9. Isto pode soar trivial, mas não é: lembre-se de que a sua pergunta deve admitir em princípio mais de uma resposta. Quais seriam as respostas logicamente plausíveis que você consegue imaginar para a sua pergunta? Dito de outro modo, enumere algumas hipóteses concebíveis para a solução do seu problema. Feito isso, escolha a sua preferida: seu melhor palpite para a resposta da pergunta, a solução do seu problema em que você preliminarmente acredita (sua hipótese de trabalho). Dentre as demais respostas concebíveis, aponte agora aquela hipótese que você julga contrariar mais crucialmente a sua própria: aquela que você quer contestar – a sua, digamos, “hipótese rival”. Explicite as razões pelas quais você julga que essa outra hipótese é a “rival” crucial da sua hipótese de trabalho. 
  10. Identifique variável independente e variável dependente em sua hipótese de trabalho. 
  11. Agora, antes de prosseguir, detenha-se por um momento e pergunte-se, em termos puramente especulativos, não empíricos: por que você acredita na sua hipótese de trabalho? Por que lhe parece razoável em princípio atribuir o comportamento da sua variável dependente à variável independente que você escolheu? Quais seriam os mecanismos (causais, em princípio) a que você atribuiria a vinculação aqui postulada entre essas duas variáveis? Como eles vinculam as duas variáveis? Em suma, esboce em poucas linhas a teoria subjacente à sua hipótese de trabalho – e, só para não perder o hábito, bem rapidamente, também aquela subjacente à hipótese rival. 
  12. Aponte alguns falseadores potenciais da sua hipótese, ou seja, eventos que, se acontecerem no mundo, te farão acreditar que a sua hipótese está errada. Reflita: esses eventos te fariam acreditar na hipótese rival? 
  13. Faça agora o experimento mental oposto, e imagine falseadores potenciais da hipótese rival. Em que medida eles constituiriam uma corroboração da sua hipótese de trabalho? 
  14. Comece agora (só agora!…) a esboçar o desenho de sua pesquisa. Imagine maneiras de você testar a sua hipótese contra o “mundo real” (ou, melhor ainda, se possível, a testar uma hipótese contra a outra: a sua hipótese de trabalho contra a hipótese rival). O que você buscaria observar no mundo para tentar estabelecer se a sua hipótese de trabalho é verdadeira ou falsa? 
  15. Como você observaria essas coisas? Em outras palavras: imagine uma maneira de você operacionalizar empiricamente as suas variáveis, ou seja, identificar no mundo diferentes formas de se manifestarem as variáveis, diferentes valores que elas podem assumir (isto pode ser uma mensuração quantitativa ou não – mas lembre-se: uma variável deve variar…). 
  16. Esboce o desenho da pesquisa usando “O”s (para diferentes observações da variável dependente) e “X”s (para “tratamento”, ou seja, o momento de operação do nexo entre a variável independente e a dependente), à maneira de Campbell. [Consultar material do curso para a exposição e discussão de variados desenhos de pesquisa – mas nada impede que você invente outro.] 
  17. (Ameaças à validade.) Em que medida o seu desenho elimina explicações (hipóteses) alternativas à sua? Ou seja, digamos que dê tudo certo, e a sua hipótese se veja corroborada pelos dados empíricos produzidos na observação do seu caso: o que poderia, ainda assim, ter saído errado? Que outra hipótese (imaginada ou não nas questões anteriores) seria ainda consistente com os mesmos dados? 
  18. Especifique um desenho alternativo (pode ser inventado ou extraído de Campbell) que também poderia ser usado para se tentar responder à sua questão. E procure assegurar-se de que ele poderia eliminar a maldita hipótese que sobreviveu ao desenho anterior. Lembre-se, porém, de que nenhum desenho elimina todas as conjecturas alternativas… 
  19. Explique em quê o desenho afinal escolhido é melhor e pior que o desenho alternativo. O que é que cada um controla e o outro não? Mais especificamente, avalie em que medida os variados tipos de ameaças à validação são eliminados ou não pelo desenho escolhido (e pelo desenho alternativo). 
  20. Descreva em linhas gerais a pesquisa que você quer fazer – agora com palavras, para uma pessoa normal… Faça de conta que você está escrevendo para um amigo seu que nunca tenha estudado metodologia científica. Faça-o entender a maneira como a pesquisa aqui desenhada te ajuda a resolver o problema que você se propôs. 
  21. Lembre-se de que mecanismos teóricos e nexos causais não são diretamente observados, mas sim inferidos. Em última análise, porém, o que de fato importa do ponto de vista da ciência não é tanto a sobrevivência ou não da sua hipótese, mas sobretudo a teoria que resulta – ainda que de maneira um tanto indireta – do experimento. Situe o seu problema no contexto mais amplo da literatura corrente, e responda: por que a sua pesquisa deveria ser feita?

3 respostas em “Como fazer um projeto de mestrado ou doutorado!?

  1. Muito bacana! Vou pensar em adaptações para meus alunos de graduação que tem que fazer TCCs. No meu caso, dica similar e excelente veio da minha querida orientadora de doutorado, a Argelina Figueiredo, que me disse: se você não conseguir definir seu problema de pesquisa em um parágrafo, ainda não tem um problema de pesquisa.

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